Diário da Amazônia

Bebês Reborn e os limites entre o afeto e a razão jurídica

A judicialização de um boneco evidencia uma crise de discernimento entre o simbólico e o real


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Nas últimas semanas, os chamados "bebês reborn" - bonecos hiper-realistas que imitam bebês humanos - deixaram de ser apenas uma curiosidade ou um nicho de colecionadores para ocupar o centro de uma discussão jurídica, ética e legislativa no Brasil. A situação ganhou notoriedade após a divulgação de um processo judicial em que um ex-casal disputa na Justiça a guarda de um bebê reborn, alegando vínculos afetivos e até interesses comerciais com a figura da boneca. Ao mesmo tempo, parlamentares em diversas esferas do poder público propuseram leis que visam coibir o uso indevido desses bonecos em serviços públicos e garantir atendimento psicológico para pessoas emocionalmente ligadas a eles.

A judicialização de um boneco evidencia uma crise de discernimento entre o simbólico e o real. A advogada envolvida no caso relatou, nas redes sociais, seu espanto ao receber a demanda, destacando o envolvimento emocional das partes com o objeto e, ao mesmo tempo, a existência de ganhos financeiros vinculados ao perfil digital da "criança", o que mistura afetividade, marketing e identidade digital.

Paralelamente, na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 2320/2025, proposto pelo deputado Dr. Zacharias Calil (União-GO), pretende aplicar multas de até R$ 30 mil a quem utilizar os reborns para obter prioridade em filas, atendimento hospitalar ou acesso a benefícios legais destinados a mães e crianças. O argumento é simples: ao simular a presença de uma criança, essas pessoas estariam cometendo fraude e prejudicando quem realmente precisa de atendimento prioritário.

Medidas semelhantes surgem nos legislativos estaduais e municipais. Em Minas Gerais, um deputado propôs a proibição de atendimento médico a reborns no SUS e multas para quem tentar burlar o sistema. Em Porto Velho, projeto semelhante busca barrar o uso de recursos públicos em atendimentos envolvendo esses bonecos. Já no Rio de Janeiro, há duas abordagens opostas: enquanto na Alerj se propõe um programa de saúde mental para pessoas com vínculos emocionais excessivos com reborns, na Câmara Municipal foi aprovado o Dia da Cegonha Reborn, uma data oficial para homenagear artesãs que produzem os bonecos.

Esse cenário escancara a complexidade do tema. De um lado, os bebês reborn têm, sim, uma função terapêutica reconhecida em casos de luto perinatal ou transtornos emocionais. De outro, o uso abusivo e confuso desses bonecos como substitutos reais de crianças, especialmente em contextos públicos e jurídicos, exige um olhar crítico e equilibrado.

A criação de leis para punir abusos, como o uso de reborns para furar filas ou buscar atendimentos indevidos, é necessária para preservar o bom funcionamento dos serviços e evitar fraudes. Mas não se pode ignorar que, por trás desses comportamentos, pode haver sofrimento psíquico real. Nesse ponto, iniciativas como o apoio psicológico defendido na Alerj são fundamentais.

Estamos diante de um fenômeno que mescla carência emocional, ilusão, negócios e arte. Como sociedade, devemos buscar um equilíbrio: proteger o espaço da fantasia e do afeto, sem permitir que ele ultrapasse os limites do bom senso e do interesse coletivo. Mais do que julgar, é preciso compreender — e legislar com responsabilidade, humanidade e lucidez.

Fernando Pereira

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