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Xô, CLT: por que muitos jovens abominam trabalho com carteira assinada

Alvo de jovens nas redes, CLT se tornou quase "palavrão". O que explica o fenômeno e o que dizem especialistas sobre o futuro do trabalho


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Rafaela Felicciano/Metrópoles

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Um movimento que ganhou as redes sociais nos últimos meses, impulsionado por inúmeros vídeos publicados por influenciadores digitais, acendeu o sinal de alerta entre profissionais da área trabalhista, economistas, advogados, empresas e pais de crianças e adolescentes. Jovens vêm usando suas contas em plataformas como TikTok e Instagram para manifestar uma verdadeira ojeriza ao modelo regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) - o tradicional formato da "carteira assinada" -, por meio do qual são estabelecidos deveres, direitos e garantias para a relação entre empregador e empregado.

Um dos vídeos que mais gerou repercussão e logo viralizou nas redes foi publicado pela influenciadora Fabiana Sobrinho, a Fabi Bubu, que conta com cerca de 435 mil seguidores no Instagram e mais de 1,7 milhão no TikTok. Ela relatou o caso envolvendo sua filha de 12 anos, que disse não ter intenção de aderir ao regime de trabalho CLT quando iniciar sua vida profissional. "Andar de ônibus todo dia, muita gente, chefe, pessoas mandando…", justificou a garota. Fabiana reprovou o comentário da filha: "É o pensamento de alguns jovens: eles acham que ser CLT é ser pobre".

Entenda

Instituída em 1943, sob o governo do então presidente Getúlio Vargas, a CLT completou 82 anos no último dia 1° de maio.

A legislação assegura aos empregados assistência nos casos de doença ou acidente laboral e direitos como jornada máxima de 8 horas diárias, adicional por hora extra, descanso semanal, 13° salário, licença-maternidade e paternidade, além do pagamento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), seguro-desemprego e aposentadoria, entre outros benefícios aos quais os trabalhadores autônomos ou informais não têm acesso.

Em uma rápida busca sobre o assunto nas redes sociais, especialmente em perfis de adolescentes e jovens, é muito comum se deparar com expressões como "xô, CLT", "adeus, CLT" ou "se der tudo errado, viro CLT".

Pais de estudantes vêm compartilhando em seus perfis pessoais e em grupos de WhatsApp relatos de que o tema já se tornou motivo de discussões e brigas em salas de aula entre crianças e adolescentes, que ofendem colegas com o termo "CLT", como se fosse um xingamento.

O peso dos influenciadores

Segundo Marcel Zangiácomo, especialista em direito trabalhista empresarial e sócio do Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados, a aversão de muitos jovens à CLT "é um reflexo das mudanças culturais e econômicas dos últimos anos, com o avanço das redes sociais" e o peso cada vez maior exercido pelos "influencers" no dia a dia de crianças e adolescentes.

"As redes trouxeram para o jovem um entendimento de que não é mais necessário ter uma formalização no trabalho porque seria muito mais fácil ficar em frente a um computador, em um ambiente informal como o seu quarto ou a sala de casa, e ter uma atividade econômica a partir daquilo", afirma. "Tem um filtro que a internet traz que faz aquilo parecer muito mais vantajoso do que realmente é. Como influenciador, pelo menos em tese, a pessoa tem uma autonomia muito mais ampla do que a de um empregado CLT."

A economista Carla Beni, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) e conselheira do Conselho Regional de Economia do Estado de São Paulo (Corecon-SP), entende que a onda anti-CLT entre os jovens "extrapola a economia e entra em um terreno sociológico". "As redes sociais criam ídolos. Esses influenciadores vendem fragmentos de vidas romantizadas: uma ficção na qual todo mundo é rico, todo mundo fica rico. Os jovens acreditam que podem se tornar empresários ricos e de sucesso e que não precisam fazer faculdade para ganhar dinheiro", observa.

Apesar do glamour em torno do sucesso profissional e econômico dos grandes influenciadores, os números apontam que a realidade é mais árdua do que se pode supor. Segundo dados do relatório "The Creator Revolution", do Creative Class Group, menos de 4% dos cerca de 362 milhões de criadores de conteúdo para redes sociais em atividade hoje, em todo o mundo, conseguem viver exclusivamente de seu trabalho como influencers.

O levantamento mostra ainda que menos de 1% dos "creators" têm 1 milhão ou mais de seguidores, 60% têm menos de 5 mil, e 75%, menos de 10 mil. No Brasil, que possui cerca de 10 milhões de criadores de conteúdo digital, apenas 0,54% ganham mais de R$ 100 mil mensais, ao passo que 31,4% recebem entre R$ 2 mil e R$ 5 mil, e outros 6%, mais de R$ 20 mil. Seis em cada 10 influenciadores relataram ter passado recentemente por algum episódio de "burnout" - a Síndrome do Esgotamento Profissional, distúrbio emocional caracterizado por exaustão, estresse e esgotamento físico decorrente de situações de trabalho.

A glamourização do empreendedorismo

Ainda segundo os especialistas ouvidos pela reportagem do Metrópoles, a rejeição de jovens ao regime de trabalho CLT também é fruto de certo "encantamento" pela ideia de empreender, "ser o seu próprio chefe", sem as obrigações e amarras do modelo hierárquico baseado em cadeias de comando com diferentes níveis de autoridade e responsabilidade dentro das empresas.

Segundo dados da mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgada em maio pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o percentual de informalidade no Brasil é de 38% dos trabalhadores. A taxa de população ocupada que trabalha por conta própria alcançou 25,3%. Por outro lado, no primeiro trimestre deste ano, eram 74,6% os empregados do setor privado do país que tinham carteira assinada. Atualmente, mais de 39 milhões de brasileiros são CLT.

Apesar de vantagens como a maior autonomia e flexibilidade no dia a dia, quem trabalha por conta própria também enfrenta uma série de adversidades. De acordo com o IBGE e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), apenas 51,6% dos microempreendedores individuais (MEIs) conseguem manter seus negócios após 5 anos. Entre as pessoas de até 29 anos de idade, o percentual é de apenas 41,3%.

Não é só. Uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), realizada no ano passado, apontou que 67,7% dos trabalhadores por conta própria gostariam de ser CLT e 45% se diziam autônomos por necessidade, e não por escolha.

"Há uma romantização da ideia de que você pode ser empresário, que o Brasil é um país de empreendedores. Houve uma glamourização da possibilidade de as pessoas não terem patrão, poderem fazer seus horários e definirem suas próprias regras de trabalho. Esse pensamento acabou se consolidando no imaginário de muita gente com as redes sociais, que vendem rapidez e facilidade", analisa Carla Beni.

A CLT precisa se modernizar?

Para Marcel Zangiácomo, a negação dos mais jovens à CLT é "um fenômeno que parece ser passageiro". "Acredito que seja uma moda, algo que não deve se estabelecer no longo prazo. A CLT, apesar de todos os problemas e necessidades de ajustes que eventualmente podem ser apontados, oferece muitas proteções ao empregado, principalmente em questões como doenças, gravidez, afastamentos previdenciários, além de garantias no momento da rescisão contratual", destaca.

Os analistas concordam, no entanto, que a legislação trabalhista precisa se adequar aos novos tempos e às demandas dos mais jovens, especialmente os da Geração Z - nascidos entre 1997 e 2012, que vêm provocando uma verdadeira revolução no mundo do trabalho.

"Temos um aparato legal da década de 1940. A CLT precisa trazer novos artigos, inclusive sobre questões de internet e mídias sociais, novas formas de prestação de serviço para além do vínculo empregatício tradicional, além da questão dos autônomos, PJs e do contrato intermitente, que já foi inserido nas mudanças legislativas de 2017 [na reforma trabalhista aprovada pelo Congresso Nacional durante o governo do ex-presidente Michel Temer]. A CLT precisa se modernizar e ter um olhar efetivo para os jovens", defende Zangiácomo.

Raquel Nassif Machado Paneque, que atua na área trabalhista do Autuori Burmann Sociedade de Advogados, aponta a precariedade no trabalho como um dos fatores que contribuem para a deslegitimação da CLT entre os mais jovens. "Essa pecha contra a CLT não é responsabilidade da própria CLT, mas da precarização das relações de trabalho e de um modelo econômico que tem inúmeras distorções e muitas vezes não oferece uma remuneração adequada", critica.

"Estamos vivendo uma situação bastante temerária. Os direitos que foram conquistados correm risco de amanhã ou depois ser minimizados. Hoje temos assegurado, por exemplo, um 13º salário. Mas, se as pessoas cada vez mais se afastarem do formato CLT, alguns desses benefícios poderão se extinguir", alerta.


Metrópoles

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