Amazonas

ZONA FRANCA E SUAS ORIGENS: O impacto da crise da borracha no setor de transportes

Esse esforço justificou-se pela dinâmica social e econômica gerada pelas rendas provenientes da comercialização.


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Marilene Corrêa da Silva afirma, em sua obra As metamorfoses da Amazônia, que desde a colonização luso-espanhola do século XVI a região pode ser vista como uma formação econômico-social produzida pelo capitalismo e, portanto, sujeita aos processos de expansão e crise do capital. Esse fenômeno foi claramente perceptível num curto intervalo de tempo, entre 1870 e 1912, quando se consolidou na Amazônia a infraestrutura logística necessária para o transporte da borracha — tanto para o escoamento da produção quanto para o deslocamento de cargas, trabalhadores e prospecção de novas áreas a serem exploradas.

Esse esforço justificou-se pela dinâmica social e econômica gerada pelas rendas provenientes da comercialização do produto nos mercados interno e externo. Essa dinâmica destinou vultosas quantias de recursos financeiros para os rios e para os seringais, contando com o investimento de capital privado — estrangeiro e de empresários locais —, além das subvenções públicas viabilizadas pela arrecadação tributária. E aqui, mais uma vez, nos deparamos com os princípios econômicos abordados no início desta série de editoriais, cunhados por Gregory Mankiw (2009): "às vezes os governos podem melhorar os resultados dos mercados" e "as pessoas reagem a incentivos".

Contudo, com a crise econômica instalada, os investidores que aportaram na Amazônia também se dissiparam, obedecendo aos mesmos princípios, levando seus recursos para mercados mais promissores ou, mesmo, aceitando os prejuízos e remontando suas estratégias de negócios.

 

A Crise no setor de transportes após 1912:

O setor de transportes foi o mais impactado pela queda abrupta dos preços e, consequentemente, pela redução da produção de borracha na Amazônia. Samuel Benchimol, em sua obra Navegação e Transporte na Amazônia (1995), relata que, em 1912, o setor operava com capacidade estimada em 46,4 mil toneladas e empregava mais de 4,8 mil tripulantes, contribuindo para tornar produtivos os rios e o interior. No entanto, a partir de 1913, o setor se desestruturou completamente. As embarcações que não deixaram a Amazônia com as empresas de capital estrangeiro, ou que não foram vendidas, acabaram sucateadas nos portos da região, sem ter o que transportar.

Os armadores locais, responsáveis pelo transporte de grande parte das cargas produzidas no interior, não conseguiram manter os serviços. Deixaram de atender povoados, seringais e aviadores parceiros e, por conseguinte, não renovaram suas frotas. Mário Ypiranga Monteiro, em O regatão (1958), destaca que, até 1928, nenhuma casa comercial de Manaus havia renovado suas frotas, restando apenas os lentos vapores que consumiam muita lenha — alguns aposentados, outros enferrujando nos portos, sem ter o que transportar, e outros ainda sinistrados em acidentes.

 

Figura 1 - Navio a vapor Justo Chermont

Fonte: Acervo pessoal de Algacir Gurgacz. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/78059737@N08/8109001516/sizes/l/

Informações: Construído em 1895 na Inglaterra. Operado pela Amazon River Steamship Navigation Company nas Rotas de Belém, Santarém, Manaus e Porto Velho. Ficou famoso por transportar o escritor Ferreira de Castro, autor de A Selva

A empresa subvencionada pelo governo também foi atingida pela crise, pleiteando, em 1913, aumentos nos repasses para viabilizar a permanência de seus navios nas águas da bacia amazônica, devido aos prejuízos causados pela elevação dos custos — combustível, tripulação, manutenção e serviços de bordo — e pela queda nas receitas.

O Porto de Manaus, inaugurado no início do século XX e que teve elevados custos arcados pela Fazenda Pública desde 1902, acreditando-se na manutenção da arrecadação tributária, impunha altos custos de operação às embarcações que desejavam realizar o transbordo de passageiros e cargas. Isso levou os barcos de menor porte, de armadores particulares locais, a atracarem às margens dos igarapés para embarcar e desembarcar passageiros e cargas, criando uma classe de trabalhadores — os carregadores — que se aglomeravam nos pontos de ancoragem assim que uma embarcação se aproximava, caminhando longas distâncias na lama durante o período da seca para prestar seus serviços. Essa classe profissional secular sobrevive até os dias atuais nos portos da capital e do interior.

A redução do movimento de embarcações nos rios amazônicos aniquilou muitos povoados que se dedicavam às atividades de abastecimento das embarcações. Os portos de lenha que resistiram à fuga dos trabalhadores elevaram o preço do combustível (lenha), gerando mais dificuldades para equilibrar os custos. Ademais, a redução do movimento econômico nos rios, levando à perda de dinamismo do transporte fluvial, acarretou problemas aos moradores ribeirinhos, pois os navios eram os únicos meios de contato e socorro numa época em que não existiam televisão, telefone, internet, rádio, e o telégrafo era uma tecnologia disponível apenas na capital e acessível apenas àqueles que podiam pagar pelo serviço.

 

A mudança da matriz de propulsão e da matéria-prima de construção das embarcações

A substituição gradativa da matriz de propulsão das embarcações — do carvão para o combustol (óleo diesel) — levou ao desaparecimento progressivo dos agrupamentos populacionais ainda existentes em torno dos portos de lenha, processo que se estendeu até depois da Segunda Guerra Mundial. Djalma Batista, em O Complexo da Amazônia (2007), destaca que, em 1915, foi inaugurada a navegação movida a óleo no Amazonas, no rio Juruá. Essas embarcações passaram a ser chamadas de "barcos regionais", "motores de linha" ou "recreio", sendo construídas em madeira nos próprios estaleiros das orlas das cidades que ainda se mantiveram ativas após a crise que assolou a Amazônia.

Nascia um novo mercado de transporte de cargas e passageiros, adequado à nova realidade socioeconômica. Os estaleiros se dedicavam à fabricação de embarcações por meio de mão de obra artesanal carpinteira. A partir da década de 1920, já se percebia em Manaus, Belém e Santarém o desenvolvimento do ofício naval para a construção de embarcações de madeira — uma verdadeira engenharia cabocla.

A necessidade de adaptação marcou toda a caracterização desse novo setor produtivo: as embarcações possuíam tripulação reduzida, eram adaptadas à nova tecnologia do petróleo e, inicialmente, operavam na clandestinidade, já que o transporte regular era aquele fomentado pelo Estado brasileiro — o barco a vapor.

Essas embarcações transportavam excessos de cargas e passageiros para compensar os custos da atividade, e não raramente naufragavam por esse motivo. Por outro lado, os antigos proprietários dos "portos de lenha", sem capital suficiente para investir em infraestrutura adequada ao armazenamento do novo combustível, saíram do mercado, abrindo espaço para os pontos de abastecimento flutuantes e uma nova plataforma de trabalho, levando para alguns pontos do interior da Amazônia os investimentos que, até então, se concentravam apenas na capital.

Apesar de o óleo ser mais caro que a lenha, a economia de tempo nas viagens, o maior espaço a bordo, a redução da tripulação e os ganhos ambientais justificaram a mudança da matriz energética. Com a retirada da fornalha que alimentava a máquina a vapor, a emissão de fumaça foi reduzida, evitou-se a derrubada de árvores e foram criadas condições mais salubres de transporte para passageiros e tripulações. Com motores mais potentes, menores e sem o enorme aparato mecânico da propulsão a vapor, as embarcações tornaram-se mais velozes e livraram seus conveses dos estoques de madeira necessários às longas viagens, além de reduzirem o tempo de parada nos portos para abastecimento.

Nesse momento da história, não apenas a tecnologia foi incrementada, mas também as técnicas de navegação. As embarcações a vapor, que costumavam puxar a reboque alvarengas e canoas para aumentar a capacidade de carga e passageiros, deram lugar às balsas e empurradores, pois descobriu-se que um motor é mais eficiente, econômico e veloz quando empurra do que quando puxa — técnica que foi adaptada às características fluviais amazônicas para viabilizar o transporte de cargas em geral.

Independentemente de todas as utilidades que o barco recreio proporcionou, ele também trouxe problemas para os moradores ribeirinhos. Os banzeiros criados pela velocidade das embarcações invadiam plantações de várzeas, abalavam estruturas de casas durante a cheia, alagavam canoas e causavam consideráveis perdas à população ribeirinha, num período de escassos recursos financeiros.

A transição da matriz de propulsão das embarcações na Amazônia durou até depois da Segunda Guerra Mundial, tendo recebido grandes incentivos devido ao esforço de guerra implementado a partir de 1942, com a assinatura dos Acordos de Washington entre Brasil e Estados Unidos, o que fez renascer a economia da borracha na região.

No próximo editorial, iniciaremos a abordagem sobre o Esforço de Guerra e como ele permitiu nova dinâmica na Amazônia.

 

Marcelo Souza Pereira, é Economista, Especialista em Gerência Financeira, Mestre em Desenvolvimento Regional, Doutor em Sustentabilidade na Amazônia. É ex-superintendente da SUFRAMA e servidor público cedido à Câmara Federal.

 

 

Referências citadas:

SILVA, Marilene Corrêa da. As metamorfoses da Amazônia. Manaus: Edua, 2000.

MANKIW, N. G. Introdução à Economia: Princípios de Micro e Macroeconomia. Rio de Janeiro: Campus, 2009.

BENCHIMOL, Samuel. Navegação e transporte na Amazônia. Manaus: Edição Reprográfica, 1995.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. O regatão: notícias históricas. Manaus: Sérgio Cardoso e Cia Ltda. Editores, 1958. (Edições Planície; Coleção Muiraquitã).

GURGACZ, Algacir. Navio a vapor Justo Chermont. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/78059737@N08/8109001516/sizes/l/

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