Ilustração sobre violência doméstica.
Reprodução/Loide Gonçalves
Vergonha, medo e dores emocionais e físicas. Esses são alguns dos sentimentos que mulheres vítimas de violência doméstica sentem. De acordo com 17° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Rondônia possui a maior taxa de feminicídio no Brasil. Com números alarmantes, o poder público e até mesmo entidades sociais atuam diariamente para diminuir as sequelas de um estado que invalida e mata mulheres.
Mais de 8 mil ocorrências foram registradas de janeiro a agosto de 2023. Dados do Observatório Estadual de Segurança Pública de Rondônia ainda apontam que, mais de 2,5 mil foram em Porto Velho.
Fazem parte do rol de violência doméstica ameaças, injúrias, calúnias e lesões corporais. Veja a tabela abaixo.
‘Sala Lilás’ e ‘MP Presente: Mulher Protegida’
A Lei Maria da Penha, nº 11.340 de 2006, fez com que as punições para agressões contra mulheres dentro do ambiente doméstico e familiar se tornassem mais rigorosas. Segundo a promotora Tânia Garcia, ela também trouxe para as instituições a obrigatoriedade de especialização para o atendimento das mulheres vítimas de violência doméstica.
"Até então como acontecia: todas as situações de violência contra mulher ia para o juizado criminal e isso virava transação penal, cesta básica… Não tinha nada muito efetivo. A lei trouxe um mecanismo de proteção e de responsabilização penal do ofensor", explicou.
A promotora contou que o Ministério Público de Rondônia (MPRO) percebeu a necessidade de ser uma "porta de atendimento" para mulheres em situação de violência.
A partir disso, surgiu a ideia de montar uma sala especializada para este tipo de atendimento. A "Sala Lilás" sanou essa necessidade e faz atendimentos a cerca de oito anos.
Além de oferecer uma escuta qualificada, a Sala Lilás se destaca como local de direcionamento das vítimas que ficam sem saber onde procurar ajuda. No espaço, o acolhimento é oferecido, bem como o encaminhamento para resolução de questões jurídicas como realização de boletim, pedido de medida protetiva, entrada em programas assistenciais, guarda dos filhos e muito mais.
O projeto "MP Presente: Mulher Protegida" também veio com o objetivo de estar mais próximo das mulheres. O MP começou a ir até os lugares que, muitas vezes, não possuíam torre de telefone para conhecer "o caminho tortuoso que a mulher precisava seguir para denunciar uma violência e para chegar até o sistema de proteção e responsabilização do ofensor".
"[Na época], nós idealizamos esse projeto Mulher Protegida, que era, inclusive, a possibilidade de levar o serviço que já era oferecido aqui na Sala Lilás para todos os distritos, por isso o nome: Ministério Público Presente", contou a produtora sobre as medidas tomadas a partir dali, como a divulgação dos canais de atendimento da Sala Lilás.
‘Vou acabar sendo morta’
Por trás dos números, existem mulheres que possuem sonhos e histórias. Como a vítima Jaíne Marques, de 28 anos, que sobreviveu a violência. E decidiu usar sua voz nas redes sociais para alertar outras mulheres.
Ela detalha como foi o início do relacionamento abusivo que sofreu. Quando eles se conheceram era "tudo às mil maravilhas". Mas, com dois meses de relacionamento, os ciúmes excessivos começaram a aparecer. "Ele tinha ciúmes das minhas roupas, eu não podia usar roupa decotada, eu não podia rir alto, eu não podia dar minha opinião em uma roda de amigos dele, eu não podia postar foto de biquíni, eu não podia postar foto que ele achava provocadora, eu não podia beber nenhum tipo de álcool…", lembrou.
Contou ainda que as brigas começaram a acontecer durante a gravidez, onde alguns "surtos" faziam com que seu ex-companheiro a expulsasse de casa. No dia do nascimento da filha, ainda no hospital, a vítima chegou a sofrer tortura psicológica.
"Foi aí que eu percebi que estava vivendo um relacionamento abusivo, logo que eu engravidei", relembra e conta que, antes mesmo das agressões físicas, o homem a ameaçava e não deixava terminar a relação.
De acordo com a psicóloga Raynanda Melgar, existem fases que fazem parte do ciclo da violência.
"Às vezes não é nem uma violência física no início: é um grito, é tratar mal, é humilhar aquela mulher. Essa primeira fase é muito importante de ser detectada para evitar as outras. A outra seria onde a violência física ocorre de fato e a outra seria uma fase em que esse homem se mostra arrependido. Mas aí tudo começa de novo de forma muito mais intensa", explicou.
Jaíne relata que sofreu agressões físicas por quase um ano e que a violência se tornou rotineira por ciúmes, por não querer sair ou por não concordar com ele. "Eu apanhei no dia das mães, eu apanhei no meu aniversário… Foi ficando muito rotineiro. Ele falava que ia mudar, pedia desculpas, pedia para eu pensar na família e no outro dia fazia de novo. Eu tentava sair e ele trancava a porta. Não deixava eu contar para ninguém", contou.
Para ela, a gota d’água foi durante um final de semana. "Eu apanhei na sexta, no sábado e no domingo. Eu estava com minhas pernas dormentes. Ele me deu tanto chute que parecia que eu tinha perdido os movimentos das pernas. Foi quando eu falei pra Deus: ‘não dá mais pra eu continuar vivendo desse jeito, eu vou acabar sendo morta’", disse.
No domingo, a denúncia foi feita por ligação. "Os primeiros dias depois da denúncia foram horríveis para mim, eu gritava de dor. Parecia que rasgava minha alma. Acordava assustada, ansiosa, porque eu estava dependente emocionalmente dele", contou sobre o seu processo de "libertação", como ela chama.
Vida após o trauma
Cada processo de saída de um relacionamento abusivo é único e pessoal. Para Jaíne, ficou a força e as consequências. Segundo ela, até hoje, cerca de um mês após a denúncia, ainda sente dores nas pernas ao andar devido aos chutes. Mas ficou na lembrança
"Hoje eu me sinto uma mulher mais forte. Que não vou deixar mais nenhuma pessoa entrar para me fazer mal, nem com minhas filhas. Todo dia Deus tem me fortalecido. Sei que dias melhores vão vir e que eu posso ajudar muitas outras mulheres a serem fortes", explicou.
Além disso, confessou que suas filhas deram uma força a mais nesse processo. "Eu não queria que minhas filhas passassem por aquilo, eu queria quebrar aquele ciclo, porque eu não quero jamais que minhas filhas tenham um relacionamento desse e achem normal", afirmou.
Jaíne denunciou no início do mês de setembro e possui uma medida protetiva que proíbe seu ex-companheiro de se aproximar dela e de toda a família. O juiz considerou que, de acordo com as provas, "as crianças são constantemente expostas às violências".
A psicóloga Raynanda também conta sobre esse período de término de relação com uma denúncia de violência doméstica. "Reconhecer a violência é um passo fundamental, mas não é o último, infelizmente. A vítima ainda precisa lidar com um monte de consequência. Por isso é importante todo apoio psicológico de procurar um acompanhamento e ter o apoio dos familiares e amigos que possam ajudar essa mulher. O apoio das políticas públicas quando a mulher não tem independência financeira também é fundamental. Tudo isso é preciso ser trabalhado no pós", concluiu.
Em Rondônia, entre os dias 1º de janeiro a 29 de setembro, 2.241 medidas protetivas de urgência foram emitidas. O número de documentos é próximo aos pedidos de todo ano de 2022. Confira abaixo.
Filhas do Boto Nunca Mais
Uma das ONGs que atuam com amparo da vítima de violência doméstica no estado é a "Filhas do Boto Nunca Mais". O nome faz referência ao conto do boto, um peixe típico da região. Principalmente nas comunidades ribeirinhas, a lenda é usada para justificar gravidez não planejada ou de uma mãe solteira.
Dentre as atividades desenvolvidas pela ONG, estão as rodas de conversas e palestras, devido a importância de falar sobre o assunto visto que muitas pessoas não possuem conhecimento de que vivem um relacionamento abusivo.
Outra forma de trabalho é a sala de atendimento humanizado, localizada na Central de Flagrantes de Porto Velho. O espaço foi uma conquista da ONG, em parceria com a Dra. Rosilei de Lima. "A ideia da sala de atendimento na Central de Flagrantes é porque a maioria dos flagrantes vão para lá e não para a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher e Família (DEAM). Então precisava de uma sala de atendimento ali em horários estendidos", explicou a presidente da ONG, Hana Lopes.
Segundo ela, a sala funciona de domingo a domingo com profissionais especializados como assistentes sociais e psicólogas. O espaço não é exclusivo para mulheres que desejam levar o agressor à justiça.
"[O objetivo] é que ela [a vítima] tenha conhecimento para sair daquela relação e possa se reerguer e a sala oferece isso. Ela também oferece à mulher a possibilidade de denunciar, obviamente, é uma escolha dela. Mas que ela saiba que tem um lugar que possa ser acolhida, ela vai ter pessoas que vão ouvi-lá sem julgamento. Ela vai ser levada ao Centro de Referência de Assistência Social para que possa ter assistência necessária, ela vai ser encaminhada para uma rede de acolhimento que vai poder fazer divórcio, regulamentar guarda… Tudo encaminhado pela associação", contou.
Saiba como denunciar
As denúncias podem ser feitas pela vítima para o Ministério Público de Rondônia, telefone 180 ou 190. Os mesmos canais podem ser usados por testemunhas que desejam denunciar até mesmo anonimamente. Veja outros meios.
Além disso, denúncias também podem ser feitas virtualmente em todas as unidades policiais ou pela delegacia virtual.
O Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia (TJRO) possui um formulário para solicitar medida protetiva pelo site ou aplicativo. O processo é avaliado por um juiz no prazo de até 48 horas.
Loide Gonçalves/Portal SGC