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Em mais um capítulo de sua política de retração internacional, o governo dos Estados Unidos anunciou, nesta terça-feira (22), sua saída da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). A decisão, comunicada pelo Departamento de Estado, alega que a entidade da ONU tem promovido uma "agenda ideológica" que entra em conflito com os interesses norte-americanos.
Segundo a porta-voz Tammy Bruce, a Unesco tem se dedicado a pautas "globalistas e polarizadoras", dando atenção excessiva aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU — uma agenda internacional que, segundo o governo, não coaduna com a doutrina "America First" (América em primeiro lugar), marca registrada da política externa do ex-presidente Donald Trump, que lidera a atual administração interina.
"A Unesco promove causas sociais e culturais polarizadoras e mantém um foco desproporcional nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, uma agenda ideológica e globalista de desenvolvimento internacional que vai contra nossa política externa", disse Bruce.
A retirada será formalizada apenas em dezembro de 2026, mas já marca uma ruptura simbólica com o multilateralismo. A diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, lamentou a decisão, embora tenha admitido que a saída já era esperada. "Lamento profundamente a decisão do presidente Trump de, mais uma vez, retirar os Estados Unidos da Unesco. Por mais lamentável que seja, esse anúncio já era esperado, e a Unesco se preparou para isso."
Histórico de rupturas
Esta não é a primeira vez que os Estados Unidos deixam a Unesco. Fundador da organização em 1945, o país já havia se retirado em 1984, sob o governo de Ronald Reagan, acusando a agência de má gestão financeira e viés antiamericano. O retorno só ocorreu quase duas décadas depois, em 2003, no governo de George W. Bush, após supostas reformas internas.
Em 2018, durante o primeiro mandato de Trump, os EUA novamente abandonaram a Unesco, citando, à época, uma suposta tendência anti-Israel por parte da instituição. O governo Joe Biden reverteu a decisão e reintegrou o país à entidade em 2023, afirmando que a participação americana era essencial para contrabalançar a influência de países como a China.
Com a nova saída, os Estados Unidos voltam a se isolar de uma das principais plataformas multilaterais de cooperação em educação, ciência e cultura — e retiram, mais uma vez, sua contribuição orçamentária, que representava cerca de 8% do total do financiamento da Unesco. Em 2018, esse percentual chegou a ser de 22%.
Crises internas e escândalos ampliam desconfiança
Embora o discurso oficial aponte razões ideológicas, a saída americana também ocorre em meio à crescente desconfiança em relação à integridade de organizações vinculadas à ONU. Nos últimos anos, tanto a Unesco quanto outras entidades do sistema da ONU foram alvo de denúncias que desgastaram sua imagem global.
No Brasil, por exemplo, uma reportagem da Agência Pública revelou em 2011, com base em documentos vazados pelo WikiLeaks, suspeitas de lavagem de dinheiro envolvendo a sede da Unesco em Brasília. O caso envolvia convênios com o Ministério da Educação e levantava preocupações sobre a transparência dos repasses e a atuação de intermediários pouco fiscalizados.
Mais recentemente, em 2024, líderes do Pacto Global da ONU no Brasil — iniciativa que atua em parceria com a Unesco e outras agências — foram acusados de assédio moral e práticas abusivas em ambiente corporativo, segundo revelou reportagem do UOL. A denúncia acirrou ainda mais os debates sobre a governança e o controle interno dessas instituições, alimentando a retórica de governos nacionalistas que questionam a legitimidade de organismos internacionais.
Impactos e reações
A saída dos EUA representa não apenas um golpe financeiro à Unesco, mas também político. A influência dos Estados Unidos nas decisões da entidade vinha sendo um fator de equilíbrio geopolítico, especialmente em temas delicados como a proteção de patrimônios históricos, políticas educacionais em áreas de conflito e promoção da liberdade de imprensa.
Analistas afirmam que a nova retirada evidencia um enfraquecimento do papel dos Estados Unidos como líder em pautas culturais e educacionais globais. Além disso, ao abandonar compromissos multilaterais, o país abre espaço para que outras potências — como China e Rússia — ocupem posições estratégicas em organismos internacionais.
"A retirada dos EUA é, ao mesmo tempo, simbólica e pragmática. Ela desestrutura o orçamento da Unesco e sinaliza ao mundo que Washington prefere agir de forma isolada, em vez de dialogar com a comunidade internacional", avalia Marianne Kehl, pesquisadora em relações internacionais da Universidade de Georgetown.
Com a decisão, cresce o desafio da Unesco em manter seu funcionamento regular, garantir a credibilidade de suas ações e sustentar sua missão de promoção da paz e do desenvolvimento sustentável em um cenário internacional cada vez mais polarizado.
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Gabriel Lopes