O Brasil é um país marcado por traumas não elaborados
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Como estudioso de psicanálise e pós-graduado na área, sempre me chamou atenção a forma como o chamado "jeitinho brasileiro" é tratado no debate público: ora como motivo de orgulho, associado à criatividade e à esperteza, ora como marca de atraso moral e social. O que observo, no entanto, é que raramente analisamos o jeitinho sob a perspectiva que mais o revela: a sua dimensão psíquica e histórica. Para mim, ele não é apenas um comportamento. É um sintoma. E como todo sintoma, ele aponta menos para o que somos hoje e mais para o que fomos forçados a ser ao longo da nossa história.
Quando olhamos para os mais de três séculos de colonização e para as estruturas de poder que se consolidaram no Brasil, percebemos que o país nasceu em um ambiente onde a lei não protegia a todos, o Estado não era confiável e a justiça não era igualitária. Durante séculos, portugueses e elites locais se beneficiaram de privilégios explícitos, enquanto a maioria — indígenas escravizados, africanos escravizados e mestiços marginalizados — vivia à margem de qualquer garantia institucional. Psicologicamente, isso produziu um aprendizado emocional profundo: a regra, no Brasil, nunca foi vivida como proteção coletiva, mas como obstáculo.
Diante disso, o sujeito brasileiro desenvolveu um mecanismo característico de sobrevivência: a capacidade de contornar, improvisar, dobrar a realidade para conseguir aquilo que, de outra forma, seria negado. O jeitinho, nesse sentido, é filho direto de um contexto histórico que sempre ensinou que seguir as regras não era suficiente para viver — e muitas vezes, que as próprias regras eram injustas, distantes e excludentes.
Mas há algo ainda mais profundo. O Brasil é um país marcado por traumas não elaborados: escravidão, violência institucional, desigualdade extrema, autoritarismo recorrente e desamparo social. A psicanálise ensina que traumas coletivos produzem formas específicas de subjetividade. Em sociedades traumatizadas, é comum emergir um comportamento caracterizado por desconfiança na autoridade, dificuldade de cooperação e apego à esperteza individual como forma de autoproteção. No Brasil, esse comportamento se cristalizou culturalmente no "jeitinho".
Quando alguém tenta "dar um jeito", o que está implícito é: "não posso contar com as instituições; preciso resolver sozinho; se eu não fizer isso, serei prejudicado". Trata-se de uma defesa psíquica construída ao longo dos séculos, que opera no imaginário coletivo brasileiro quase como um reflexo automático. O problema é que o jeitinho, embora tenha surgido como estratégia adaptativa, não evoluiu para um comportamento saudável. Pelo contrário: ele passou a reforçar a lógica que o criou.
Ao buscarmos vantagem em tudo, perpetuamos o cenário de desconfiança e desigualdade que, por sua vez, alimenta a necessidade de continuar recorrendo ao jeitinho. É um ciclo típico de sociedades que nunca elaboraram seus traumas, onde a repetição — como nos lembra Freud — substitui a elaboração. Por isso, não considero o jeitinho apenas um desvio moral ou cultural. Vejo nele um reflexo claro de uma psique coletiva que ainda funciona sob o impacto de séculos de desamparo, violência e ausência de instituições confiáveis. O sujeito brasileiro aprendeu a sobreviver sem o Estado, apesar do Estado e até contra o Estado.
E a consequência é que, mesmo quando finalmente conquistamos uma democracia mais estável e instituições mais sólidas, continua difícil acreditar nelas. A sombra do trauma histórico se impõe: o passado segue operando no presente. Mas é importante reconhecer que o jeitinho também revela potencialidades. Ele nasce de uma criatividade emocional, de uma capacidade de adaptação e improviso que poucos povos possuem. O problema não está na criatividade, mas no uso distorcido dela. O que precisamos, enquanto sociedade, é transformar esse talento em cooperação, inovação e inteligência coletiva — e não em estratégias para burlar regras que, em tese, deveriam valer para todos.
A elaboração de um trauma coletivo exige tempo, memória e compromisso com a verdade histórica. Reconhecer que o jeitinho não é apenas "característica do brasileiro", mas *um sintoma de dores profundas não resolvidas, é um passo fundamental. O Brasil vive hoje o período mais longo de estabilidade democrática da sua história. Isso, para mim, é uma oportunidade inédita de reconfigurar o nosso psiquismo coletivo. Talvez, quando aprendermos a confiar mais em nós mesmos como sociedade, o jeitinho finalmente deixe de ser uma defesa e possa se transformar em algo muito maior: criatividade a serviço do bem comum.
Fernando Pereira