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ZONA FRANCA E SUAS ORIGENS: O soldado da borracha e o renascimento do sistema de aviamento

Esse pequeno recorte da história oral, passada de pais para filhos, ilustra a vida de tantos outros milhares que aportaram na Amazônia.


O editorial desta semana tem um sentido especial para este autor: sou neto de Raimundo Arigó, soldado da borracha recrutado em Martinópole-CE e levado para o seringal em Novo Aripuanã-AM, no ano de 1943. Não conheci pessoalmente meu avô, que faleceu em 1981 antes de meu nascimento, vítima das sequelas deixadas pela vida no seringal. Ainda assim, sempre me orgulhei das histórias contadas por minha mãe, sobre sua bravura, coragem e esperança de um dia voltar à sua terra no Nordeste.

Ele trabalhou diuturnamente no seringal, acreditando piamente ser um "soldado em defesa da soberania nacional". Mas se decepcionou em 1947, ao descobrir que a guerra havia terminado em 1945. O sentimento? Ser enganado. O desejo? Voltar para sua terra. E o que o impediu? As dívidas contraídas.

Esse pequeno recorte da história oral, passada de pais para filhos, ilustra a vida de tantos outros milhares que aportaram na Amazônia durante a Segunda Guerra Mundial. O Estado brasileiro viabilizou o mesmo sistema produtivo e logístico perverso que já havia existido no primeiro ciclo da Economia da Borracha, no século XIX — o aviamento — a partir da assinatura dos Acordos de Washington, em 1942.

Visando o abastecimento dos aliados com borracha silvestre, o governo brasileiro implantou, no fim de 1942, o Serviço Especial da Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA). Iniciou-se então o planejamento de um programa de alistamento voluntário, conduzido como uma verdadeira operação militar. O recrutamento, regulamentado no ano seguinte pelo Decreto-Lei nº 5.225, teve como principal alvo a população masculina do Nordeste brasileiro — região de onde já haviam migrado centenas de milhares de homens e suas famílias entre 1870 e 1912, motivados pela fuga da seca e da pobreza que assolavam o Sertão.

Logo, o Nordeste foi considerado o lugar ideal para arregimentar novamente mão de obra para a coleta da seiva da seringa. O alistamento colocava os trabalhadores diante de um "trilema": ir para a guerra, ir para a Amazônia ou permanecer no Nordeste enfrentando a seca. Acreditavam na promessa de um regime de trabalho autônomo, com possibilidade de acumular riquezas, direito à terra para plantar e usufruir de parte do que produzissem (madeira, castanha, caça), além de amparo às suas famílias (alimentação, moradia, educação e assistência médica).

Warren Dean, em A luta pela borracha no Brasil (1998), destaca que tais acordos nunca foram cumpridos. O Banco de Crédito da Borracha não fiscalizava os seringais, e qualquer produção era imediatamente confiscada no barracão para pagar as dívidas acumuladas. O barracão era o único fornecedor de itens essenciais à vida na selva — comercializados a preços superfaturados, aprisionando o trabalhador pela dívida: "enquanto o seringueiro recebia U$ 0,15 por quilo de borracha, seu patrão recebia U$ 6,25".

A garantia de que, ao final da guerra, retornariam às suas terras com toda a riqueza produzida, como heróis da Pátria sob total apoio do governo, foi o que motivou o "sim" para viver a guerra na Amazônia. Os trabalhadores foram convencidos de que seriam tão importantes quanto os soldados que serviam nas forças armadas brasileiras na linha de frente do conflito — estratégia que fez o seringueiro nordestino se sentir um verdadeiro soldado, tendo como campo de batalha os seringais.

Ariadne Araújo, em A saga dos Arigós (1998), relembra que os nordestinos eram convencidos por cartazes que mostravam seringueiros em meio a tambores carregados em caminhões e árvores de seringueira lado a lado. Iludidos por essas imagens, logo se imaginavam naquele local onde facilmente fariam dinheiro. Mas as imagens eram falsas: o transporte por caminhões era impossível, pois as estradas na Amazônia são os rios. Além disso, a fartura de látex não existia, já que as árvores silvestres são dispersas. Na verdade, tratava-se de imagens dos seringais asiáticos.

Em O romanceiro da batalha da borracha, Samuel Benchimol (1992) descreve que esses homens abandonaram o passado no Nordeste e rumaram para o sofrimento na Amazônia. Saindo do Nordeste, enfrentavam horas de viagem por estrada até Belém-PA ou Fortaleza-CE, passando dias ou meses em alojamentos insalubres, muitas vezes cercados por arames farpados como em campos de concentração, até serem despachados para Manaus-AM ou para o Território do Acre, na terceira classe dos navios.

Maria de Andrade Silva, em A borracha passada na história (2005), revela que, quando a viagem partia de Fortaleza por navio até Belém ou Manaus, circulavam narrativas sobre o risco de torpedeamento por submarinos alemães — um alerta que nunca podia ser descartado. Ariadne Araújo complementa que, em caso de naufrágio, os soldados poderiam sobreviver com bolachas e água guardadas no bolso interno ou, se capturados pelos inimigos, deveriam engolir uma pílula de cianureto que lhes era entregue, pois o suicídio era considerado preferível à prisão inimiga.

O enredo da guerra estava montado e encenado. Ao chegar aos portos da Amazônia, iniciava-se a seleção feita pelos próprios seringalistas, cujo principal critério era o porte físico do trabalhador. Após escolherem seus homens, os patrões se responsabilizavam por levá-los ao seringal e ensiná-los o serviço. Nesse momento, o contrato assinado no Nordeste perdia valor, e passava a vigorar a lei do barracão, sustentada pela exploração e pelos castigos — onde o patrão era jurista e legislador.

Nesse aspecto, entre todos os malefícios deixados pela Batalha da Borracha, Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves, em De "Cativo" à "Liberto" (2011), identifica que, na constituição socio-histórica do seringueiro, sua recusa gradativa em continuar alimentando o regime do barracão o levou a se estabelecer às margens dos rios, criando comunidades que complementavam a renda com agricultura. Muitos seringueiros que conseguiam pagar suas dívidas e acumular saldos ofereciam-se para arrendar as terras onde trabalhavam, na esperança de futuramente comprá-las. No entanto, muitas dessas operações eram ilegais, pois os seringalistas, em diversas ocasiões, sequer eram donos das terras — apenas arrendatários de outros patrões — deixando o seringueiro, ao final do processo, com todo o prejuízo.

Meses antes da morte de minha mãe, Dona Maria do Rosário, ela me pediu que registrasse um pedaço da história de meu avô. Compartilho convosco este relato da mesma forma como foi oralizado na entrevista:


Ele era empregado dum patrão dele, aí ele tava devendo muito. Ele trabalhava, trabalhava e nunca terminava de pagar, aí ele foi e negociou com ele: que ele vendesse as terra para ele trabalhar. Primeiro ele fez o arrendamento de terra e com esse arrendamento ele conseguiu pagar a dívida dele, aí ele tirou saldo e desse saldo ele deu entrada na colocação chamada São Pedro, no rio Aripuanã. Quem vendeu as terra pro papai foi o Raimundo Carvalho, só que antes dele as terra tinha sido de um outro dono chamado "Filétro". O Filetro ficou sabendo que o papai tinha comprado as terra, e as terra tava muito valiosa porque o papai já tinha plantado muita semente de castanha e umas vinte estrada com cinquenta pé de seringueira cada. Como a documentação do terreno não tinha sido passada, porque o Raimundo Carvalho não tinha documento, que tava tudinho com o Filetro, aí o papai perdeu as terra dele nesse sentido (PEREIRA, 2015). 

O Brasil já não precisava mais de seus soldados da borracha, que foram abandonados na floresta à própria sorte. Os americanos, que tiveram participação direta nesse processo de pauperização humana, jamais foram responsabilizados pelas vidas perdidas no meio da selva amazônica. Os sobreviventes que não tiveram condições de retornar ao "seu Sertão" foram definitivamente incorporados à população amazônica, absorvendo a cultura local e contribuindo com suas expressões sociais e modos de vida.

Os direitos dos soldados da borracha — de serem reconhecidos como trabalhadores recrutados pelo governo brasileiro — só foram assegurados com a Constituição Federal de 1988 (Artigos 54 e 54-A dos ADCTs) e regulamentados por meio da Lei nº 7.986, de 1989, que instituiu o pagamento de pensão.

No próximo editorial, trataremos da retomada da navegação e das infraestruturas recuperadas para viabilizar o escoamento da produção, em atendimento aos compromissos firmados nos Acordos de Washington.

Marcelo Souza Pereira, é Economista, Especialista em Gerência Financeira, Mestre em Desenvolvimento Regional, Doutor em Sustentabilidade na Amazônia. É ex-superintendente da SUFRAMA e servidor público cedido à Câmara Federal.


Referências citadas:

ARAÚJO, Ariadne. A Saga dos Arigós: A história dos Soldados da Borracha. Ceará: Suplemento especial do jornal O POVO, dia 21 de junho de 1998. Disponível em: https://soldadodaborrachadenuncia.blogspot.com/2014/01/a-saga-dos-arigos-historia-dos-soldados.html. Acesso em: 14 ago 2025.

BENCHIMOL, Samuel. Romanceiro da batalha da borracha. Manaus: Imprensa Oficial, 1992.

CHAVES, Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues. De "Cativo" a "Liberto": o processo de constituição sócio-histórica do seringueiro no Amazonas. Manaus: Valer, 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

_____. Lei nº 7.986, de 1989. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7986.htm.

DEAN, Waren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Nobel, 1989.

PEREIRA, Marcelo Souza. Navegar é preciso: a lógica e a simbólica dos usos socioambientais do rio. UFAM: Manaus, 2015 (Tese de Doutorado). Disponível em: https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/4730. Acesso em: 14 ago 2025.

SILVA, Maria de Andrade. A borracha passada na história: os soldados da borracha durante a Segunda Guerra. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, 2005. Monografia. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/15856847/SILVA-MAria-A-Borracha-passa-na-Historia-Os-Soldados-da-Borracha-na-Segunda-Guerra-Mundial. Acesso em: 14 ago. 2025.

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