Desde abril deste ano, temos publicado uma série editorial com o propósito de apresentar aos leitores as origens da Zona Franca de Manaus, explorando seu processo de formação sob os aspectos sócio-históricos e econômicos. A série está estruturada em três fases:
• Origens (16 artigos já publicados)
• Marcos Regulatórios (em breve)
• Fase Contemporânea, incluindo a Reforma Tributária (em breve)
Na semana passada, concluímos a Primeira Fase - Origens. No entanto, excepcionalmente, em razão da simbólica data de hoje — em que celebramos a Elevação da Comarca do Alto Amazonas à categoria de Província do Amazonas — decidimos republicar os dois primeiros artigos da série.
Figura 1 - Auto da Instalação da Província do Amazonas
Fonte: Duarte (2025)
Convidamos todos os leitores que ainda não acompanharam os textos anteriores a visitar a página do SGC/Amazonas e conhecer essa trajetória histórica de quase um século, que antecede a criação das políticas de desenvolvimento regional e culmina na legislação que instituiu a Zona Franca de Manaus.
Ao final do artigo, disponibilizamos a lista completa dos textos já publicados. Desejamos a todos uma excelente leitura e uma reflexão enriquecedora sobre a história que moldou nossa região.
A Elevação da Comarca do Alto Amazonas à Província do Amazonas
A Zona Franca de Manaus é o resultado da evolução geopolítica e socioeconômica da Amazônia, particularmente da Amazônia Ocidental (atuais espaços ocupados pelos estados do Amazonas, Rondônia e Roraima, posteriormente incorporado o Acre). Para compreender essa construção é necessário remontar ao Século XIX, quando as principais evoluções sociopolíticas passaram a acontecer no Norte do Brasil.
Antes de iniciar essa jornada de conhecimento, que se seguirá semanalmente por meio de artigos que explicam o modelo de desenvolvimento regional mais duradouro e promissor implementado na Amazônia Ocidental em meados do Século XX, gostaria que o leitor se familiarizasse com alguns pressupostos da teoria econômica, que reputo serem relevantes para compreendermos as dinâmicas socioeconômicas na Amazônia.
Gregory Mankyw, economista norte-americano e professor da Universidade de Harvard, em Princípios de Economia (2009), diz que "às vezes os governos podem melhorar os resultados dos mercados" e "as pessoas reagem a incentivos". Ao longo da história da existência humana não há nada mais verdadeiro que a assertiva de que um Estado organizado precisa planejar, estrategicamente, o desenvolvimento de seu território para não sofrer perdas irreparáveis, além do fato de que o homem não se contentará à sorte do acaso na luta pelo sustento. Esses são preceitos seculares que delinearam a história econômica do mundo e não seria diferente na Amazônia.
Então, caro leitor, o primeiro evento a ser considerado para compreendermos a gênese da Zona Franca é a elevação da Comarca do Alto Amazonas à categoria de Provincia, no ano de 1850. Mas, para entender o quadro político da época, precisamos conhecer o cenário da Independência do Brasil, na Amazônia, em 1822, quando as colônias espanholas da América do Sul também iniciaram movimentos separatistas, criando instabilidade geopolítica, sobretudo nas fronteiras do Norte brasileiro, exigindo do governo imperial atitudes que afirmassem sua soberania em vastos territórios abandonados e desconhecidos que, àquela altura, contava com poucos povoados espalhados por toda a calha do rio Solimões-Amazonas e diminuta atividade produtiva ligada apenas ao poliextrativismo, o que não representava incentivo para a permanência humana nas longínquas terras.
As insurgências locais separatistas, da Comarca do Alto Amazonas, contra a Província do Grão-Pará e contra o governo imperial brasileiro, somadas à necessidade de resguardar as fronteiras brasileiras das investidas inglesas e americanas sobre o Vale do Amazonas em busca dos produtos extrativos, criaram o cenário propício à decisão de elevar a Comarca à categoria de Província, o que foi feito pela Lei nº 582, de 5 de setembro de 1850 - nascia, assim, a Província do Amazonas.
As atividades econômicas neste espaço eram minguadas: a agricultura contava apenas com unidades produtoras de subsistência dispersas num vasto espaço; o sistema de transporte se resumia a canoas e barcos à vela; a indústria voltava-se a processar minimamente a produção extrativa em fábricas rudimentares; a pecuária estava reduzida aos campos do rio Branco; e se desenvolvia um intenso comércio à beira-rio, promovido pelas canoas de regatão. Portanto, para os primeiros administradores da Província do Amazonas, os principais problemas a serem enfrentados eram o reduzido contingente populacional, o desconhecimento do potencial produtivo dos rios e florestas, a inexistência de infraestrutura fluvial que apoiasse a comunicação entre os diversos pontos da malha hidrográfica, bem como promover a arrecadação que pudesse manter ativa a Fazenda Pública para financiar os aparelhos sociais necessários à fixação da população e dos empreendimentos.
Durango Duarte, em sua recente obra "A construção da Província do Amazonas" (2025), destaca que "A criação da província, portanto, deve ser entendida como um gesto duplo: por um lado, respondia às pressões locais por autonomia; por outro, reforçava o poder imperial em uma região estratégica."
As primeiras medidas de fomento à dinâmica social e econômica na Província do Amazonas
Uma vez criada a Província do Amazonas pelo Império do Brasil - abrangendo os territórios que hoje correspondem aos estados do Amazonas, Rondônia e Roraima, e, a partir de 1903, o Acre -, os primeiros anos da nova unidade administrativa foram dedicados a estudos e levantamentos sobre potencialidades econômicas estratégicas. O objetivo era estruturar uma Fazenda Pública capaz de financiar as infraestruturas essenciais ao desenvolvimento e à manutenção da população nestas terras, como energia, infraestrutura urbana, serviços de saúde, segurança, logística etc.
Com essa visão, foi adotado inicialmente um conjunto de três medidas administrativas:
a) Logística: Em 1850, foi autorizada a contratação de empresa para operar a navegação no rio Solimões-Amazonas, com subvenção por 15 anos (Lei nº 586/1850), permitindo o acesso aos pontos mais remotos dos rios amazônicos;
b) Terras: Também em 1850, foi aprovado o regulamento de propriedade privada (Lei de Terras - Lei nº 601/1850), incentivando ocupações e atraindo força de trabalho à região; e
c) Pesquisa: Em 1852, o primeiro Presidente da Província, Tenreiro Aranha, promoveu expedições de reconhecimento dos rios e autorizou o financiamento de pesquisas sobre a flora e fauna, revelando as potencialidades econômicas da província.
Essas foram as primeiras medidas extrafiscais adotadas pelo Estado brasileiro para a Amazônia (explicaremos a extrafiscalidade em artigos futuros desta coluna, mas, por ora, basta compreender que se trata da parte da receita da qual o Estado abre mão com o objetivo de promover o desenvolvimento). Apesar do caráter nobre dessas ações, elas também atraíram à região personagens que, posteriormente, se dedicariam ao contrabando de espécies para a Europa, impactando negativamente o progresso econômico alcançado nas cinco décadas seguintes.
A partir da década de 1860, a Província do Amazonas começou a contar com as receitas oriundas da borracha, um produto estratégico que passou a ter alta cotação no mercado internacional após o desenvolvimento da técnica de vulcanização por Charles Goodyear (em 1839). A vulcanização conferiu estabilidade à borracha, tornando-a viável para diversos processos produtivos. Em termos comparativos, se hoje os semicondutores são insumos industriais essenciais para os produtos tecnologicamente mais avançados, nos séculos XIX e XX a borracha desempenhou esse papel, tornando-se fundamental para a indústria automobilística e ferroviária. Dessa forma, a borracha acompanhou o ferro e o aço onde quer que se instalassem. O grande desafio da indústria mundial à época era atingir uma escala produtiva suficiente para abastecer o mercado global.
Por meio dos estudos promovidos e financiados por Tenreiro Aranha, a partir de 1852, soube-se que a espécie Hevea brasiliensis produzia o látex mais puro, elástico e abundante. Endêmica da Amazônia, essa espécie era encontrada ao longo de mais de 3.000 quilômetros, desde a foz do rio Amazonas até o leste do Peru, norte da Bolívia, sul de Mato Grosso e a margem direita do rio Negro. Iniciou-se, então, uma intensa corrida por sua extração, financiada principalmente pelos Estados Unidos e Inglaterra, berços da primeira fase da Revolução Industrial.
Assim, a Amazônia existente até 1860 deu lugar à nova Amazônia da borracha, caracterizada por uma complexa rede comercial e de relações econômicas que se estabeleceram ao longo dos rios.
Convite à Leitura - Zona Franca e suas origens
Convidamos os leitores a explorarem os artigos listados abaixo, que dão continuidade à narrativa sobre as origens da Zona Franca de Manaus, abordando sua trajetória a partir das transformações socio-históricas e econômicas que moldaram a região.
Artigo 1: Elevação da Comarca do Alto Amazonas à Província do Amazonas - https://sgc.com.br/editorial/421484/elevacao-da-comarca-do-alto-amazonas-a-provincia-do-amazonas
Artigo 2: As primeiras medidas de fomento à dinâmica social e econômica na Província do Amazonas -https://sgc.com.br/noticia/16/421929/
Artigo 3: A organização social e econômica que se consolidou em torno da borracha https://sgc.com.br/noticia/16/422385/zona-franca-e-suas-origens-a-organizacao-social-e-economica-que-se-consolidou-em-torno-da-borracha
Artigo 4: As pessoas reagem a incentivos, o povoamento pela borracha - https://sgc.com.br/noticia/16/422786/zona-franca-e-suas-origens-as-pessoas-reagem-a-incentivos-o-povoamento-pela-borracha
Artigo 5: A infraestrutura logística criada para sustentar a economia da borracha - https://sgc.com.br/noticia/16/423238/
Artigo 6: As finanças impulsionadas pela dinâmica social e econômica da Economia da Borracha - https://sgc.com.br/noticia/16/423716/
Artigo 7: O sistema produtivo e logístico que viabilizou a Economia da Borracha - o aviamento - https://sgc.com.br/noticia/16/424113/zona-franca-e-suas-origenso-sistema-produtivo-e-logistico-que-viabilizou-a-economia-da-borracha-o-aviamento
Artigo 8: O impacto da economia da borracha na estrutura econômica do Brasil - https://sgc.com.br/noticia/16/424514/
Artigo 9: As razões que levaram ao declínio da economia da borracha no início do século XX - https://sgc.com.br/noticia/16/424952/
Artigo 10: O contexto da crise na economia da borracha - https://sgc.com.br/noticia/16/425348/
Artigo 11: O difícil caminho de retorno após a crise da borracha - https://sgc.com.br/editorial/425747/zona-franca-e-suas-origens-parte-11-o-dificil-caminho-de-retorno-apos-a-crise-da-borracha
Artigo 12: O impacto da crise da borracha no setor de transportes - https://sgc.com.br/noticia/16/426170/
Artigo 13: O ressurgimento da Economia da Borracha na 2ª Guerra Mundial - https://sgc.com.br/noticia/16/426622/
Artigo 14: O soldado da borracha e o renascimento do sistema de aviamento - https://sgc.com.br/noticia/16/427415/zona-franca-e-suas-origens-o-soldado-da-borracha-e-o-renascimento-do-sistema-de-aviamento
Artigo 15: No Esforço de Guerra, a retomada da navegação e das infraestruturas para o escoamento da produção - https://sgc.com.br/noticia/16/427790/
Artigo 16: A Constituição de 1946 e as políticas de desenvolvimento regional que fundam a ZFM - https://sgc.com.br/noticia/16/428200/
Marcelo Souza Pereira, é Economista, Especialista em Gerência Financeira, Mestre em Desenvolvimento Regional, Doutor em Sustentabilidade na Amazônia. É ex-superintendente da SUFRAMA e servidor público cedido à Câmara Federal.
Referências citadas:
DUARTE, Durango Martins. A construção da Província do Amazonas.
MANKIW, N. G. Introdução à Economia: Princípios de Micro e Macroeconomia. Rio de Janeiro: Campus, 2009.
BRASIL. Lei nº 582, de 1850. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/leimp/1824-1899/lei-582-5-setembro-1850-559821-publicacaooriginal-82232-pl.html. Acesso em: 04 set 2025.
_____. Lei nº 586, de 1850. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/leimp/1824-1899/lei-586-6-setembro-1850-559826-publicacaooriginal-82237-pl.html. Acesso em: 04 set 2025.
_____. Lei nº 601, de 1850. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L0601-1850.htm. Acesso em: 04 set 2025.
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