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ZONA FRANCA E SUAS ORIGENS:O sistema produtivo e logístico que viabilizou a Economia da Borracha - o aviamento

O sistema de aviamento estruturou uma rede comercial bem definida, baseada no fornecimento de mercadorias a crédito


Entre os anos de 1870 e 1912, consolidou-se na Amazônia um sistema produtivo marcado por sofisticação logística, apesar de seu caráter desumano e contraditório: o aviamento. Esse sistema tinha como função principal viabilizar a circulação de mercadorias e recursos entre os rios, os seringais e os centros urbanos - especialmente Manaus e Belém -, assegurando tanto o escoamento da borracha quanto o fornecimento de itens essenciais à sobrevivência dos trabalhadores na floresta.

Nesse contexto, a economia amazônica apresentava uma natureza complexa e paradoxal: capitalista, mercantilista e feudal ao mesmo tempo. Era capitalista, pois a borracha — seu principal produto — era negociada nas bolsas de valores, obedecendo à lógica da oferta e demanda. Revelava-se mercantilista na medida em que a posse de estoques e reservas de borracha determinava o poder econômico das famílias envolvidas no comércio. E, por fim, assumia traços feudais ao submeter os trabalhadores ao regime de escravidão por dívidas e trocas, estabelecendo uma relação profundamente desigual entre patrões e seringueiros.

O sistema de aviamento estruturou uma rede comercial bem definida, baseada no fornecimento de mercadorias a crédito, que permitia o escoamento das riquezas amazônicas - como a borracha e outras "mercadorias da floresta e dos rios" - em direção a Manaus, Belém, Rio de Janeiro e ao exterior. Essa engrenagem econômica mostrava-se, contudo, profundamente contraditória, uma vez que fatores externos influenciavam diretamente as condições de vida ao longo de toda a cadeia produtiva - desde os centros urbanos até os seringais mais remotos.

O aumento da demanda internacional, impulsionado por novas aplicações da borracha na Europa e nos Estados Unidos, atraiu sucessivos afluxos de capitais estrangeiros, destinados ao financiamento da produção: transporte de trabalhadores aos seringais, manutenção das embarcações fluviais e provisão de suprimentos básicos. No entanto, esses recursos muitas vezes tinham caráter ilusório, pois circulavam internamente na lógica do aviamento, gerando uma teia de endividamento que envolvia casas aviadoras, seringalistas e seringueiros.

Enquanto isso, os grandes beneficiários - compradores estrangeiros e firmas exportadoras - posicionavam-se no topo da cadeia, assumindo mínimos riscos: determinavam a demanda, controlavam os preços no mercado local e podiam desmobilizar rapidamente seus investimentos em períodos de crise.

Assim operava o sistema do aviamento:

1. Empresários internacionais da borracha, situados nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Alemanha, iniciavam o processo negociando contratos de fornecimento com as firmas importadoras e exportadoras sediadas em Manaus e Belém: essa era a etapa inicial de financiamento da operação.

2. De posse dos compromissos firmados, essas firmas encomendavam a borracha das casas aviadoras, que assumiam o elo entre o capital internacional e a produção.

3. As casas aviadoras tinham como função abastecer os seringais por meio do comércio fluvial, em troca da borracha coletada. Para isso, contavam com uma rede de comerciantes distribuídos pelos rios amazônicos, em geral donos de embarcações, que operavam tanto no transporte quanto na intermediação da produção.

4. Esses comerciantes eram os chamados aviadores de 1ª linha, responsáveis por navegar pelos rios produtores para adquirir o látex. Quando o seringalista vivia na cidade, as negociações às vezes ocorriam diretamente em Manaus, com exclusividade na compra da produção.

5. O seringalista, proprietário das terras, via na borracha uma atividade economicamente promissora. Investia, então, na construção de barracões, na abertura de "estradas de seringa" e na busca por mão de obra (muitas vezes recrutada no Nordeste, diante da escassez de trabalhadores locais).

6. Nos barracões, caso o seringalista não o administrasse pessoalmente, designava um encarregado - conhecido pelos seringueiros como "Patrão" - que cuidava do patrimônio do seringalista, organizava o armazenamento da produção, entregava a borracha aos aviadores de 1ª linha e distribuía aos trabalhadores os bens necessários à subsistência na floresta: alimentos, medicamentos, roupas, ferramentas etc.

7. Por fim, o seringueiro, último na cadeia de comercialização, mas o primeiro na cadeia produtiva, adentrava a floresta e enfrentava os perigos naturais para extrair o látex e realizar a defumação necessária à coagulação, transformando-o em "pelas de borracha". Essa produção era entregue no barracão para liquidar suas dívidas, contraídas com os custos da viagem e os mantimentos recebidos, e pegar mais mantimentos a crédito para continuar vivendo e trabalhando na floresta: assim se perpetuava uma relação de dependência por endividamento.

A navegação transformou-se em elemento-chave do sistema de aviamento, sendo fundamental para conectar os diversos elos da cadeia de comercialização e garantir o fluxo contínuo de mercadorias pela região. A Figura 1 apresenta uma representação desse arranjo logístico e produtivo, que se consolidou enquanto a borracha permaneceu como principal produto de exportação da Amazônia.

 

Figura 1 - Organograma do aviamento na economia da borracha


Fonte: Pereira (2015)

 

O sistema de aviamento replicava-se em cada seringal, funcionando quase sempre sem transações monetárias diretas. O barracão recebia do seringueiro a produção de borracha e outros itens resultantes de atividades complementares, deduzindo seus débitos e fornecendo, em contrapartida, os mantimentos necessários à sua permanência na floresta por mais algum tempo. O seringueiro, nesse contexto, sobrevivia - não com dignidade, mas alimentado pela esperança.

Como o capital que sustentava essa engrenagem comercial concentrava-se nas mãos de empresas estrangeiras, o sistema revelava-se frágil, como um castelo de cartas: ao menor sinal de instabilidade, o fluxo de recursos podia ser interrompido e toda a infraestrutura montada era desmontada com rapidez, migrando para mercados mais atrativos - o que de fato ocorreu.

Apesar disso, o aviamento permaneceu ativo até o século XX, deixando vestígios por diversos povoados às margens dos rios amazônicos. Sua disseminação por toda a região repercutiu significativamente nas receitas das Fazendas Públicas de Manaus e Belém, contribuindo com saldos promissores para as contas nacionais. No próximo artigo deste editorial, abordaremos o impacto da economia da borracha na estrutura econômica do Brasil.

 

Marcelo Souza Pereira, é Economista, Especialista em Gerência Financeira, Mestre em Desenvolvimento Regional, Doutor em Sustentabilidade na Amazônia. É ex-superintendente da SUFRAMA e servidor público cedido à Câmara Federal.

 

Portal SGC

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